Cartesianismo

"De acordo com o prefácio dos Princípios"
Gostaria de explicar aqui a ordem que, parece-me, devemos seguir para que nos instruamos. Primeiramente, o homem que ainda só possui conhecimento vulgar e imperfeito, deve, antes de tudo, encarregar-se de formar uma moral que seja suficiente para ordenar as ações da vida, porque isso não deve ser adiado e porque devemos sobretudo procurar viver bem. Após isso, também deve estudar lógica, não a da Escola - pois ela nada mais é do que uma dialética que ensina os meios para fazer entender a outrem as coisas que já se sabe ou então de emitir opiniões, sem julgamento, sobre as que não se sabe; desse modo, ela antes corrompe o bom-senso do que o desenvolve - mas aquela que ensina a bem conduzir a razão na descoberta de verdades que se ignora. E porque ela depende muito do uso, é bom que ele se exercite, por muito tempo, na prática de regras pernitentes a questões fáceis e simples como as da matemática. Depois, quando já tiver adquirido o hábito de encontrar a verdade nessas questões, ele deve começar a aplicar-se à verdadeira filosofia cuja primeira parte é a metafísica, que contém os princípios do conhecimento, entre as quais está a explicação dos principais atributos de Deus, da imaterialidade de nossas almas e de todas as noções claras e simples que estão em nós. A segunda é a física, na qual, após ter encontrado os verdadeiros princípios das coisas materiais, examinamos em geral como o universo é composto; depois, em particular, qual a natureza da terra e de todos os corpos que se encontram mais comumente em torno dela como o ar, a água, o fogo, o ímã e outros minerais. Após o que também é necessário examinar em particular a natureza das plantas, dos animais e, sobretudo, do homem, a fim de que se seja capaz de, depois, encontrar as outras ciências que lhe são úteis. Desse modo, a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco a física e os ramos que daí saem todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber: a medicina, a mecânica e a moral; eu acho que a mais elevada e mais perfeita moral, que pressupõe inteiro conhecimento das outras ciências, é o último grau da sabedoria.

Ora, assim como não é das raízes nem do tronco que colhemos os frutos, mas da extremidade dos ramos, assim a principal utilidade da filosofia depende das utilidades de suas partes, as quais só podemos aprender por último. Mas, embora eu as ignore quase todas, o zelo que sempre tive no sentido de prestar algum serviço ao público levou-me a publicar, há uns dez ou doze anos, alguns ensaios sobre as coisas que me parecera ter aprendido. A primeira parte desses ensaios foi um discurso sobre o método de bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências, na qual apresentei sumariamente as principais regras da lógica e de uma moral imperfeita que pode ser seguida provisoriamente, enquanto ainda não se estabelece algo de melhor. As outras partes foram três tratados: um da Dióptrica , outro dos Meteoros e o último da Geometria . Pela Dióptrica , pretendi mostrar que se pode avançar bastante em filosofia para se chegar, por seu intermédio, ao conhecimento das artes que são úteis à vida e porque a invenção das lunetas de aproximação, que eu aí explico, é uma das mais difíceis das que já foram procuradas. Pelos Meteoros , procurei fazer com que se reconhecesse a diferença existente entre a filosofia que eu cultivo e aquela ensinada nas escolas em que se tem o hábito de tratar da mesma matéria. Finalmente, pela Geometria , pretendi demonstrar que eu descobrira várias coisas ignoradas até então e, desse modo, fazer acreditar que ainda podemos, nesse campo, descobrir várias outras, incitando, dessa forma, todos os homens a procurarem a verdade. Depois disso, prevendo a dificuldade que muitos teriam para conceber os fundamentos da metafísica, procurei explicar seus pontos principais num livro de Meditações que não é grande, mas cujo volume foi aumentado e cuja matéria foi muito clarificada pelas objeções que várias pessoas muito doutas me enviaram sobre o assunto e pelas respostas que lhes dei. Finalmente, quando me pareceu que esses tratados procedentes haviam preparado bem o espírito dos leitores para receber os Princípios da Filosofia , eu os publiquei então; dividi o livro em quatro partes, das quais a primeira contém os princípios do conhecimento e que podemos denominar filosofia primeira ou metafísica. Eis por que, a fim de bem compreendê-la, é preciso ler antes as Meditações que escrevi sobre o mesmo assunto. As outras três partes contêm tudo o que há de mais geral na física, a saber, a explicação das primeiras leis ou princípios da natureza e a maneira pela qual os céus, as estrelas fixas, os planetas, os cometas e o universo em geral são compostos; depois, em particular, a natureza desta terra, do ar, da água, do fogo e do ímã - que são os corpos que podemos encontrar mais comumente em torno dela - e de todas as qualidades que observamos nesses corpos como o são a luz, o calor, o peso e semelhantes; por meio disso, penso ter começado a explicar toda a filosofia ordenadamente, sem ter admitido nenhuma das coisas que devem preceder as últimas sobre as quais escrevi.