"A razão ou o juízo é a única coisa que nos faz homens e nos distingue dos animais." [ René Descartes ]
A maior parte da obra de Descartes é consagrada às ciências (domínios da matemática e da ótica) mas o que ele mais quer é conseguir um modo de chegar a verdades concretas. Sua filosofia, exposta principalmente em o "Discurso sobre o Método", o mais amplamente lido de todos os seus trabalhos, é a proposta de meios para tal.
[...] há algum tempo eu me apercebi de que, desde os meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não pode ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências (DESCARTES, 1987b, p. 17).
Tendo notado que nada há no eu penso, logo existo que me assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar é preciso existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que conhecemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras (DESCARTES, 1987a, p. 47).
O bom senso [ou, a razão] é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais que o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. (DESCARTES, 1987a, p. 29).
O filósofo Descartes foi quem melhor sistematizou um conjunto de ideias que repercutiu diretamente na formação de uma nova era, os novos tempos, que teve na ciência e na tecnologia os seus pilares fundamentais.Agora, não só ao conhecimento teórico, mas, sobretudo, à aplicação prática. Se em Bacon “saber é poder”, em Descartes, “a ciência deve tornar-nos senhores da natureza”. Vinculada à ideia de intervir nela, conhecê-la e dela se apropriar, os novos propósitos científicos
No "Princípios da Filosofia", Descartes classifica as ciências quanto à sabedoria ou grau de clareza e nitidez de idéias que é possível atingir em cada uma. A ciência, ele diz, pode ser comparada a uma árvore; a metafísica é a raiz, a física é o tronco, e os três principais ramos são a mecânica, a medicina, e a moral, estes formando as três aplicações do nosso conhecimento, que são, o mundo externo, o corpo humano, e a conduta da vida. Mas os conhecimentos científicos não bastam a si mesmos: o tronco da física sustenta-se em raízes metafísicas. É o Bom Deus quem garante o conhecimento científico, porque garante as idéias claras. A física cartesiana resulta, assim, de deduções racionais abstratas: Deus existe e serve de apoio para retirar do domínio da dúvida o conhecimento que é claro e evidente. O mundo físico está de antemão provado por uma idéia inata, a de extensão, que é a essência da corporeidade. Deus garante que idéias claras da realidade têm correspondência na realidade, Deus torna os objetos inteligíveis e os sujeitos capazes de intelecção, mas há que vencer a imperfeição do homem, cujas impressões sensíveis vem de fora e são deformadas.
A divisão da filosofia é uma questão meramente formal da lógica, e é uma questão do método. É a divisão uma parte da lógica. Diferentemente de todas as outras, tem ainda lógica que se definir a si mesma. Uma vez definidas as ciências, elas passam a ser classificadas.
Ainda que a integração de todas as disciplinas científicas e filosóficas seja uma tônica cartesiana, de onde portanto deveria nascer uma rija classificação das disciplinas, não ofereceu contudo Descartes uma visão clara da lógica e nem ofereceu uma clara divisão das ciências e da filosofia.
A classificação cartesiana da filosofia, entretanto, se revela na maneira concreta como distribuiu os temas nos seus mesmos livros.
Particularmente, deve ser citado neste sentido Princípios de Filosofia (1644), em que a palavra "princípios" não é indicadora de começos, mas de iniciação a todos os temas filosóficos, incluindo até os científicos sobre os corpos, tal como hoje vemos nas "Introduções à Filosofia", quando estas representam um elenco das principais leituras de todas as disciplinas filosóficas.
Além disso, a divisão cartesiana se pode inferir da Carta do Autor a Picot, tradutor de Princípios de Filosofia, que os verteu do latim ao francês, carta esta que foi publicada, em 1647, à maneira de prefácio da tradução.
Dali resultou a seguinte classificação: Lógica, Metafísica, Moral e demais ciências.
Dali resultou a seguinte classificação: Lógica, Metafísica, Moral e demais ciências.
A lógica de Descartes é sobretudo a lógica maior, ou seja, a que já não mais considera o conhecimento do ponto de vista exclusivamente formal, mas também enquanto sua forma atende à matéria, ou seja, às características do objeto que se faz conhecer.
Muito particularmente, encontra-se atento ao método do saber. Nesta condição, insiste nas regras que diz serem quatro. Quanto à integração geral das disciplinas do saber, que já antes referimos, é mais um tema de Lógica Maior tratado por Descartes.
A metafísica , ou Primeira filosofia, é concebida como contendo os problemas da teoria do conhecimento, ou gnosiologia, denominações que surgiriam depois de Descartes.
A física, situada num plano particular, em que se aplicam os princípios gerais, não se distingue ainda claramente em suas duas perspectivas modernas, - a filosófica (denominada depois cosmologia) e a científica (ou experimental, hoje conhecida simplesmente por física). Descartes apresenta, por ordem e partes sucessivas, a metafísica, a física e a moral. Pelo que se pode ler no já citado Prefácio:
"E dividi tal livro em quatro partes, sendo que a primeira contém os princípios do conhecimento, que é o que se pode chamar de Primeira Filosofia, ou então, Metafísica. Eis porque, para a sua boa compreensão, convém ler antes as Meditações, que escrevi sobre o mesmo assunto.
As três outras partes abrangem o que há de mais geral na física, isto é, a explicação das primeiras leis ou princípios da natureza, e a maneira pela qual os céus, as estrelas fixas, os planetas, os cometas, e geralmente todo o universo, estão compostos e ordenados.
Depois, em particular, a natureza desta terra, e do ar, da água, do fogo, do ímã, e de todas as qualidades que se notam nesses corpos, como sejam, a luz, o calor, a gravidade e outras semelhantes; por meio do que penso haver começado a explicar por ordem toda a filosofia...
A fim de conduzir tal desígnio até o fim, eu deveria de imediato explicar da mesma maneira a natureza de cada um dos outros corpos: os minerais, as plantas, os animais, e principalmente o homem; depois, enfim, tratar exatamente da medicina, da moral e das mecânicas. Era o que urgia que eu fizesse para dar aos homens um corpo todo inteiro de filosofia" (Prefácio da edição em francês de Primeiros Princípios da Filosofia).